terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Mulher Com A Camisa Vermelha do Ramones



Se você tiver a paciência de largar esse escrito e trocá-lo, momentaneamente, por um dicionário, encontrará as seguintes definições para aniversário:


1. Diz-se do dia em que faz um ano, ou mais, que se deu certo acontecimento; 2. Diz-se do dia em que se completa um ano, ou mais, de idade; 3. Relativo a esse dia, ou próprio dele, ou que nele se realiza; 4. O dia de aniversário (de um acontecimento); 5. O dia de aniversário (de alguém), aniversário natalício, dia de anos; e 6. Festa comemorativa de aniversário.

Seis definições. E o papai odeia todas elas. Há anos ele vem travando uma luta para incluir uma sétima definição, a definição suprema do que é um aniversário: um momento para celebrar, alegremente, com a família... E para ganhar presentes, é claro.

Papai sempre foi um, ah, homem de aniversários (se é que isso é possível), o tipo de pessoa que faz questão de se lembrar das datas de nascimento de cada singela pessoa, importante ou não, e que nunca perde a oportunidade de ligar para ela desejando um feliz aniversário e muitos anos de vida.

E por que ele é desse jeito? Por duas, ou melhor, três razões:

1. Porque o papai é estranho;

2. Porque, para ele, sobreviver nesse mundo agitado e, muitas vezes, violento
em que vivemos é algo que, definitivamente, deve ser celebrado e;

3. Porque papai conheceu o amor de sua vida durante os últimos minutos de seu vigésimo oitavo aniversário.

Dentre todos; este é, sem qualquer sombra de dúvida, o aniversário preferido do papai, pois foi justamente nesse bendito dia em que não somente ele descobriu ter um sósia, ganhou um momento de ternura genuíno com o tio Jorge, presenciou o tio Téo resistindo à tentação provocada por tequila, sal e limão, e, acima de tudo, foi nesse dia em que papai, por meio de uma brincadeira do destino, aprendeu a maior lição de sua vida ─ lição que fê-lo conhecer a minha mãe: os grandes momentos da sua vida não são, necessariamente, consequência do que você faz, mas também do que acontece com você, e como você, caro leitor, já deve ter percebido, muito aconteceu naquele dia...

Mas não coloquemos a carroça na frente dos cavalos! Contar-lhes-ei a história do início ao fim e na ordem certa, sem mais demoras, eis aqui a nossa última das histórias do papai...

Tudo começou na madrugada do dia 13 de junho, arrancado de seus sonhos por um barulho brusco, papai se levantou da cama com um salto, sem nem pensar duas vezes, empunhou o despertador como se fosse uma arma e, apenas de cueca e descalço, abriu devagar a porta do quarto, preparado para acertar o invasor (se é que havia algum) logo que se deparasse com ele...

Repentinamente, uma enxurrada de luzes invadiu a sala de estar por pouco não queimando as córneas do papai, quando seus cones foram ativados e a visão se adaptou aquela claridade toda, papai descobriu tio Patty parado ao lado do interruptor da sala, estava vestido com seu terno de trabalho e parecia estar acordado há horas.

Tio Patty olhou-o de ponta a cabeça, parando o olhar no despertador segurado pela mão esquerda do papai.

─ Sério, um despertador? O que você ia fazer? Me despertar até a morte, ou coisa do tipo?


Papai largou o despertador no criado-mudo e se largou no sofá, aliviado.

─ Sabe, mano, você bem que poderia ter sido mais discreto na sua entrada, digo... Ei, peraí, são duas da madrugada! ─ exclamou papai. ─ O que diabo você esta fazendo aqui?

Um sorrisinho surgiu no rosto do tio Patty.

─ Ainda bem que você me perguntou, mano ─ falou. ─ Seguinte: eu quero ser o primeiro a te dar o presente de aniversário.

─ E você tem que fazer isso às duas da madrugada? ─ indagou papai, ligeiramente irritado por causa do sono perturbado.

─ Mas é claro! ─ disse tio Patty. ─ Nunca que eu arriscaria perder para o Jorge ou para o Téo, não mesmo, não, não, eu preciso ser o primeiro.

─ Isso é adorável, mano, mas... ─ papai apontou para o despertador. ─ São duas da madrugada! E você esta de terno, ah, por que você esta de terno?

─ Porque é uma ocasião especial e porque eu estou fingindo estar trabalhando até tarde na firma hoje, ou então a Andréa não ia me deixar vir ─ respondeu tio Patty.
Papai soltou um bocejo. ─ E então, cadê o presente?

─ Ah, não esta aqui.

─ Por que eu não imaginei isso? ─ papai lamentou-se.

─ O presente esta na BR-316...

─ Não tinha um lugar mais longe, não?

─ Tinha, mas eu odeio Marudá. Enfim, o presente esta na BR-316 e, mano, acredite quando eu te digo que é o melhor presente do mundo!

─ O melhor presente do mundo?

─ Não, não, o melhor presente do mundo! ─ tio Patty tornou a dizer. ─ Preste atenção na ênfase, mano, pô!

─ E eu tenho que ganhar...

─ Ver ─ corrigiu.

─ Eu tenho que ver esse presente agora, é isso?

─ Com certeza.

─ Eu posso tentar e tentar, mas não adianta de nada, né? Eu vou continuar sendo sugado para o vórtice da sua insanidade!

─ Assim como tem sido nos últimos dezoito anos!

Papai soltou um suspiro. Sobre esse suspiro, um comentário: o observador desavisado poderia cometer o erro de prestar atenção ao suposto desânimo desse gesto quando, na verdade, deveria prestar atenção nas entrelinhas ─ o suspiro esta aí unicamente para o bem das aparências, pois papai sempre é o primeiro que salta de cabeça nas insanidades do tio Patty.

Papai se levantou do sofá.

─ Eu vou me vestir, peraí.

─ Amém, mano!

Papai colocou uma calça jeans desbotada, uma camisa do Iron Maiden usada como pijama e um par de sandálias quaisquer, saiu do apartamento 7B, desceram as escadas ─ o elevador ainda não tinha sido consertado ─, desejaram uma boa noite para o porteiro noturno, “seu” Expedito, e então eles entraram no táxi que os esperava em frente ao prédio, o táxi do falecido Elias Auberjonois, um dos suíços mais sovinas que papai já chegou a conhecer.

─ Felipe, eu sei que hoje é seu aniversário ─ falou Elias Auberjonois. ─ Mas você ainda vai pagar a corrida, entendeu bem?

─ Eu não aceitaria de outro jeito, Elias ─ disse papai, rindo.

─ Muito bem, Elias, para aquele lugar! BR-316! ─ exclamou tio Patty.

E Elias dirigiu para o tal lugar. O táxi parou no acostamento da estrada perto de um outdoor, os passageiros desceram do carro e foram em direção a propaganda em questão, ao vê-la, papai ficou boquiaberto.

─ Eu já vi muitas coisas bizarras na minha vida, meu filho, mas aquela, caramba, aquela com certeza é a quarta coisa mais bizarra que esses meus olhos já viram!

No outdoor, que fazia propaganda de um novo resort de férias, havia um homem idêntico em tudo ao papai, ou melhor, havia uma pequena discrepância: o homem tinha um bigodão, algo que nunca cresceu e tampouco crescerá no rosto do papai.

Papai ficou emocionado, lágrimas surgiram em seus olhos, ele olhou para o tio Patty e lhe deu um abraço apertado na esperança de que aquele gesto pudesse transmitir os sentimentos que não conseguiria descrever em miseras palavras.

─ Pattryck, meu irmão, esse, definitivamente, é o melhor presente do mundo!

─ E não é! ─ exclamou tio Patty.

Para os curiosos, faço um pequeno interlúdio agora para enumerar o top dez das coisas mais bizarras que o papai já viu:

(10) Tio Jorge, estranhamente, ficando mais inteligente após tomar um porre;

(09) O próprio papai fantasiado de cachorro laranja;

(08) Uma velhinha de seus setenta e muitos anos fazendo um espetáculo break dance (nem desconfio do que seja isso!) no meio da rua;

(07) Tio Patty e tia Déia brincando de mímica;

(06) Tio Téo comprando um perfume, supostamente, feito com o pênis de um boto;

(05) Um sanduíche de rua que, sem exageros, era maior do que a cabeça do tio Jorge e quase tão barato quanto universidade pública;

(04) Um outdoor com seu sósia bigodudo;

(03) Tia Ciça, na época em que era namorada do papai, espancando dois bandidos que tentaram assaltá-los;

(02) Mamãe rindo, genuinamente, de uma das piadas mais sem graças do papai;

(01) Tio Jorge, em um momento de sobriedade, chamando a sua mãe de senhora e sem tom irônico!

Muito bem, uma vez que a curiosidade tenha sido sanada, tratarei de continuar com a história.

Depois de ter mostrado para o papai o melhor presente do mundo, tio Patty o levou de volta para o apartamento, lhe lembrou sobre a festa “surpresa” que aconteceria no terraço do prédio, então se despediu com um abraço e finalmente foi para sua casa com intuito de aproveitar algumas horas de sono.

Papai, por outro lado, não conseguiu sequer fechar os olhos, ficou andando de um lado para o outro na sala de estar, comeu um sanduíche de queijo, tomou um banho quente, colocou uma roupa ideal para o sábado, pegou uma cadeira de praia e subiu para o terraço para admirar o nascer do sol, algo que não fazia há tempos.
Ainda era muito, muito cedo, antes das cinco e meia da madrugada, desse modo, papai imaginou que o terraço estaria vazio, contudo não estava e acabou encontrando a vizinha do andar de cima cuja avó (aquela que tinha o hábito de gritar “Corram, corram! Salvem suas vidas! São os cabanos!”) havia falecido recentemente.

─ Uau! ─ exclamou papai. ─ Isso que é madrugar, hein!

─ Tudo por um belo cenário ─ respondeu a vizinha que, segundo o porteiro, era uma artista, ou coisa do tipo. ─ Bom dia.

─ Bom dia ─ retribuiu papai, ele colocou a cadeira de praia ao lado da vizinha, que estava de pé. ─ Por favor ─ papai apontou para a cadeira.

─ Não, obrigada ─ ela, educadamente, recusou.

─ Bem, eu fiz a minha parte ─ disse papai, se sentando. ─ Então, você sempre acorda absurdamente cedo ou hoje é um caso particular?

─ Às vezes sim, às vezes não, é algo irregular ─ respondeu. ─ Normalmente, eu passo a madrugada em claro escutando Cyndi Lauper e irritando o meu vizinho debaixo, aquele pobre coitado deve sofrer bastante ─ ela, ingenuamente, comentou.

─ Olhe, era meio irritante quando você começou a cantar junto com ela, mas hoje em dia nem é, você até que esta cantando muito bem.

A vizinha olhou boquiaberta para ele. ─ Você é o vizinho do andar debaixo?

─ Sim, sim.

─ Oh, meu Deus! ─ falou a vizinha, envergonhada. ─ Desculpe, perdão, e-eu não t-tinha a intenção de... Desculpe, por favor, me desculpe...

─ Não, tudo bem, sério, sério ─ disse papai, aos risos. ─ Já estou tão acostumado que preciso levar algumas músicas da Cyndi Lauper no meu MP8 quando durmo fora de casa.

A vizinha soltou uma risadinha constrangida.

─ Caramba, que coisa linda! ─ exclamou papai, olhando para o sol nascente.

─ Dizem que é uma das imagens mais belas que existem ─ comentou a vizinha. ─ Eu gosto muito, me ajuda a pensar quando as coisas estão complicadas.

─ E as coisas estão complicadas? ─ perguntou papai, sem pensar.

─ Ah... ─ a vizinha mostrou a mão direita, de modo que o papai pudesse ver uma aliança de ouro no dedo anelar. ─ Eu vou me casar em duas semanas e...

─ Uhm, eu acho que deve ser normal ter algumas dúvidas ─ falou papai. ─ Digo, casamento é algo grande, é (ou deveria ser) para toda a vida, é que nem cimento!

─ É o que todo mundo vem me dizendo... ─ ela disse. ─ Só que, uh, eu não sei, o Rodrigo é um homem realmente bom e eu amo ele, mas... Sei lá, parece que tem alguma coisa faltando... Entende?

─ Há nove anos eu amei uma garota e ela me amou de volta, infelizmente, o mundo ficou contra nós e ela não conseguiu arranjar coragem de enfrentá-lo, daí acabou ─ papai olhou, gentilmente, para a vizinha. ─ Não tem problema em ter medo, muito pelo contrário, medo é bom, te faz ser cauteloso, o problema é quando o medo passa a te paralisar de ponta a cabeça...

A vizinha esboçou um sorriso no rosto.

─ Ah, qual é o seu nome?

─ Felipe, prazer. E você?

─ Rebecca. Sabe, Felipe, você é um cara legal.

E foi assim que o papai conheceu a minha mãe...

... Não, não foi. Eu só estou zoando com você, caro leitor, afinal, eu também mereço me divertir um pouco, não é?

─ Você também parece ser uma ótima pessoa, Rebecca ─ papai esboçou um sorrisinho confiante no rosto. ─ Se você não estivesse, claramente, apaixonada pelo seu noivo, eu te convidaria para sair qualquer dia desses.

─ É uma pena, então ─ comentou Rebecca. ─ Porque eu, provavelmente, teria aceitado.

─ Isso que é um mau timing! ─ riu papai. ─ Bem, eu preciso descer e me arrumar para ser sequestrado por algum amigo... ─ ele fechou a cadeira. ─ Ei, escute, vão me dar uma festa surpresa, que não é tão surpresa assim, hoje, aqui mesmo no terraço, se você e o seu noivo estiverem interessados, fiquem à vontade para aparecer.

─ Pode contar conosco! ─ falou Rebecca, animada.

─ Que bom!

Papai colocou a cadeira debaixo do braço e rumou para a porta do terraço, pisou no primeiro degrau da escada e girou nos calcanhares, pois a vizinha chamou seu nome.

─ Sim?

─ Eu não quero ser intrometida, mas, ah, o que aconteceu com a garota?

Papai sentiu uma onda de nostalgia dentro de seu corpo.

─ Eu não sei ─ respondeu. ─ Só espero que ela tenha encontrado a felicidade ─ disse papai, absolutotalmente sincero.

─ OK, mostre a sua mão direita ─ pediu Rebecca, se aproximando.

─ Ah, por quê?

─ Porque eu gostei de você e estou me sentindo generosa, então vou pôr em prática o meu conhecimento de quiromancia que não é bobagem ─ ela acrescentou ao notar o olhar descrente do papai. ─ Para te fazer uma previsão de aniversário, normalmente, eu cobro esse serviço, mas farei de graça hoje ─ continuou. ─ Quantos anos?

─ 28 anos ─ papai esticou a mão para a vizinha quiromante.

Rebecca ficou encarando, em silêncio, a palma da mão direita do papai por alguns minutos, mais de cinco e menos de dez, e então fez sua previsão: ─ O amor da sua vida é vermelho e escuta Ramones.

─ Ramones? ─ falou papai, incrédulo. ─ Como em Dee Dee Ramone? I Wanna Be Sedaded? Gabba, gabba hey? Hey, ho, let’s go? Calça jeans, tênis e jaqueta preta?

─ Sim ─ afirmou Rebecca.

─ Uau! Eu não conheço nenhuma mulher que curta Ramones...

─ Talvez não seja uma mulher... ─ brincou.

─ É... Definitivamente, é uma mulher ─ disse papai. ─ Bem, eu preciso ir. Te vejo hoje à noite? Com o... Rodrigo, não é?

─ Sim, com o Rodrigo.

─ Ótimo, então, ah, até mais tarde ─ e o papai desceu as escadas até o sétimo andar.

Uma vez no seu andar, papai abriu a porta do 7B e tomou outro susto, o segundo do dia, ao descobrir o tio Jorge sentado no seu sofá, assistindo televisão, comendo um sanduíche de peru e queijo e bebendo um copo de leite.


Papai engoliu em seco. ─ Sério, eu vou trocar a fechadura dessa porta! ─ exclamou.

─ Não ia adiantar de nada ─ disse o tio Jorge antes de dar uma mordidona em seu sanduíche. Ele engoliu o pedaço arrancado e olhou para o papai. ─ Perfeito, você já está arrumado.

─ E daí?

─ E daí que vamos sair.

─ Por quê?

─ Porque as meninas não querem que você descubra sobre a festa surpresa no terraço, para evitar que isso aconteça, a Ciça me mandou te tirar do apartamento.

─ Mas eu já sei da festa surpresa! Eu já sabia antes e você acabou de me falar! Eu já sei duplamente da festa! Não tem porque sair de casa!

─ Claro que tem ─ disse tio Jorge, terminando o sanduíche. ─ Porque se a Ciça souber que você sabe da festa, ela ficará magoada e triste e como marido dela, eu não quero que isso aconteça, portanto você não sabe de nada e vai sair sim do apartamento hoje, entendeu?

Um detalhe importante: tio Jorge tem quase o triplo do tamanho do papai e apesar de ser, ligeiramente, calmo, consegue ser bastante assustador quando quer, certa vez, por exemplo, eu pensei que ele fosse me engolir numa bocada só! Admito, no entanto, que tive minha parcela de culpa ─ eu nunca deveria ter beliscado o Pedrinho, aquilo foi errado.

Papai engoliu em seco.

─ Incrível! Eu sou um refém dos meus amigos!

Outro comentário, dessa vez, sobre esse gesto: sim, papai já foi intimidado pelo tio Jorge uma infinidade de vezes, contudo esta não foi uma daquelas vezes, pois ele tinha certeza de que o meu tio postiço o levaria para algum lugar divertido ou, no mínimo, que ele gostasse.

─ Posso pelo menos trocar de roupa? ─ perguntou.

Tio Jorge consultou o relógio do seu celular.

─ Você tem cinco minutos ─ disse ele, com um sorriso maligno (uma característica muito sua) no rosto.

Papai trocou de roupa em quatro minutos, colocou um jeans decente, calçou seus tênis, vestiu uma camisa de botão, penteou o cabelo e escovou os dentes antes de ser “convidado a se retirar” do seu apartamento pela segunda vez naquele dia.

─ Então, para onde nós vamos? ─ perguntou papai enquanto desciam as escadas.

─ Segredo ─ murmurou tio Jorge. ─ O que me lembra, você vai ter que colocar isso ─ ele tirou uma venda preta de dentro do bolso detrás da calça e passou para o papai.

─ OK, duas coisas: primeiro; isso não é nada higiênico, segundo; por quê?

─ Porque se você souber para onde iremos, não vai ter a menor graça.

─ Por favor, diga-me que eu só preciso colocar isso quando estivermos dentro do seu carro.

─ Você acha que eu sou lesado é? Por que eu te faria andar vendado na escada?

─ Porque você é maligno e o sofrimento alheio te faz sorrir ─ respondeu papai imediatamente.

Tio Jorge parou de andar, estava pensando.

─ Você tem razão, põe a venda.

─ Eu e a minha boca! ─ choramingou papai.

Em relação a descer aquelas escadas vendado, papai tem a seguinte opinião: “É mais emocionante do que saltar de bungee jumping, ou dizer para sua tia Ciça que não gostou de uma refeição preparada por ela”.

Tio Jorge ajudou o papai a se sentar no banco do passageiro do carro ─ fê-lo bater a cabeça durante o processo ─ e dirigiu para o local misterioso... Ou assim ele pensava, tio Jorge havia subestimado a memória do papai, mesmo vendado, ele reconheceu o caminho descrito pelo carro graças ao número de dobras e o intervalo de tempo entre elas, contudo preferiu ficar calado, fingindo não fazer à menor ideia de para onde estava sendo levado, afinal, qual seria a graça se revelasse seu conhecimento de tudo?

O carro parou de se movimentar, tio Jorge tirou o papai dali de dentro e o guiou por um prédio cujo mapa já havia sido “queimada” na parte detrás do crânio do papai, eles andaram por dez minutos até que enfim tio Jorge retirou a venda, “revelando”, por sua vez, o local onde estavam: a parte detrás do ginásio da antiga escola, a tão querida área da árvore.

Tio Patty e tio Téo estavam sentados no banco de concreto daquela área, a sombra da árvore os protegia do sol típico da hora e eles, assim como papai, estavam sentindo como se tivessem viajado no tempo e, repentinamente, fossem alunos do Convênio outra vez.

─ Mas você odeia esse lugar! ─ exclamou papai, olhando para o tio Jorge.

─ É, mas você o ama, então...

Como papai certamente levaria um soco no meio do rosto se abraçasse o tio Jorge, se contentou em pousar a sua mão no ombro dele e dizer “Obrigado”.

─ De nada ─ disse o tio Jorge, sem olhá-lo.

Pode parecer apático para você, caro leitor, mas, para papai e tio Jorge, aquele foi um momento de ternura genuína entre os dois, algo bastante raro, devo acrescentar, pois esse meu tio nunca foi alguém de expressar, abertamente, os seus sentimentos.

Uma vez papai me disse o seguinte sobre o tio Jorge: “Ele pode ser tão maligno quanto Satã, pode ter um coração escuro como um pedaço de carvão e pode ser tão frio quanto um iceberg, mas, no fundo, no fundo, ele é alucinado por todos nós”. E é verdade, afinal, por que outro motivo tio Jorge teria me ajudado a escolher o meu primeiro carro?

─ Então ─ disse papai se sentando embaixo da árvore. ─ Esse lugar não mudou em nada.

─ Continua exatamente do jeito que o deixamos ─ falou tio Téo.

─ O que é algo notável, considerando quanto tempo passou ─ papai comentou.

E as memórias começaram a retornar.

─ Lembra de quando eu, o Jorge, o Marcelo e o Yuri vínhamos beber aqui?

─ Lembra de quando o Hamilton tentava se balançar de galho em galho?

─ Lembra de quando o Jorge amassava uma latinha de refrigerante naquele galho que ficava ali?

─ Lembra de quando o Felipe gazetava aula do cursinho para vir aqui com o pessoal do Eixo do Mal?

─ Lembra de quando abandonamos o Hamilton aqui para terminar com a Ana Paula?

─ Lembra de quando do nosso último dia de aula?

O Quarteto Fantástico se perdeu em suas memórias, em suas risadas e em suas bobagens, de volta àquele lugar, perceberam quanto tinham mudado desde aqueles tempos de fim de adolescência, agora eram pessoas completamente diferentes, contudo, de alguma maneira, também continuavam a serem as mesmas pessoas.

─ Crescer é um acontecimento muito engraçado, meu filho ─ me disse o papai certa vez. ─ Você demora anos e anos para amadurecer, para se transformar numa pessoa que consegue sobreviver nesse nosso mundo agitado, é um processo longo e árduo que, ironicamente, só precisa de um encontro com os amigos ou mesmo uma lembrança em particular para ser revertido.

O relógio anunciava às 18 horas quando, finalmente, papai e os meus tios postiços terminaram de revisitar o passado, tio Patty e tio Téo foram para suas casas enquanto que tio Jorge deixou papai em casa, antes de ir embora, meu tio postiço lembrou-o de não subir para o terraço de jeito nenhum antes que alguém viesse buscá-lo e que deveria pôr uma expressão de surpresa convincente quando “descobrisse” a festa no terraço.

Papai obedeceu aos “pedidos” do tio Jorge, tomou um banho gelado, vestiu uma roupa mais apresentável, pegou um livro de sua estante e ficou lendo enquanto esperava alguém buscá-lo, alguém que se revelou ser o tio Téo.

─ Já esta na hora? ─ o papai perguntou.

─ Sim ─ respondeu o meu tio postiço.

Papai se levantou.

─ Bem, então vamos ─ disse ele.

─ OK, mas primeiro me mostre a sua cara de surpresa ─ pediu o tio Téo.

─ Por quê?

─ Porque se a Ciça sequer desconfiar de que você sabia disso tudo, o Jorge vai cair em cima de ti como uma manga no para-brisa, por isso... Mostre a sua cara de surpresa.

Papai desenhou um semblante de espanto no rosto.

─ Está bom assim?

Tio Téo analisou a fisionomia do rosto atentamente.

─ É, eu acho que dá pra enganar ─ falou o futuro marido de tia Ofélia. ─ Vamos?

─ Vamos! ─ assentiu o papai. E subiram para o terraço indo, como de costume, pelas escadas.

Tio Téo convidou o papai a abrir a porta que dava para o local da festa, aceitou o convite e ao abri-la, papai foi “surpreendido” por sua família e amigos, todos usando chapeuzinhos de festa sobre as cabeças, com copos de plástico numa mão e soltando um grito de “SURPRESA”, papai fingiu não estar esperando por aquilo, sorriu com felicidade, aceitou apertos de mão e abraços, comentou ter sido pego de supetão e ao encontrar com as responsáveis pela organização da festa ─ tia Déia, tia Ciça e tia Ofélia ─ perguntou como poderia agradecê-las.

─ Você pode dizer que o meu marido me ama mais do que ama você ─ brincou tia Déia.

─ É mais ou menos na mesma intensidade ─ disse o papai, aos risos.

─ É o suficiente para mim.

Tio Patty surgiu do meio da multidão, colocou um braço ao redor do pescoço do papai, ergueu seu copo de bebida e brindou: ─ O melhor dos aniversários para o melhor dos amigos!

─ Amém! ─ brindaram os convidados.

De acordo com quem estava lá, o vigésimo oitavo aniversário do papai foi uma festa bastante divertida, as pessoas riram e conversaram, contaram histórias do passado e também fizeram planos para o futuro, na verdade, o único que se sentiu ligeiramente cabisbaixo foi o tio Téo, pois ficou encarregado de ser o barman da festa, situação que o colocou na presença constante da combinação tequila, sal e limão ─ uma combinação que ele, anos atrás, jurou nunca mais degustar caso conseguisse arranjar um empréstimo para abrir sua própria empresa, algo que aconteceu.

Papai, bom amigo como sempre, se incumbiu de distrair o tio Téo por alguns minutos, de modo que a tia Ofélia pudesse transitar um pouco pela festa, se sentou perto da velha escrivaninha transformada em balcão, pediu uma latinha de refrigerante dietético e ficou a conversar com o meu tio postiço até o momento em que os deuses decidiram sorrir para ele e o fizeram olhar para trás, para a pista de dança, para uma mulher vestida com uma camisa vermelha do Ramones.

─ Era sábado à noite, eu estava tomando a minha sexta latinha de refrigerante dietético, daí olhei para trás e, do nada, lá estava ela, foi como uma cena de um filme antigo quando o marinheiro vê a garota do outro lado do salão cheio, eu bati no ombro do seu tio Téo e disse para ele “Mano, é ela”, ele sorriu para mim e retrucou “Sim, mano, é ela”.

Ali estava o papai, nervoso e tímido, sem saber o que dizer, sem saber o que fazer, ele se encantou quando seus olhares se encontraram, virou a latinha garganta abaixo e arranjou coragem do fundo de sua alma para se levantar, cruzar o terraço e conhecê-la.

─ Essa é uma das poucas noites em que eu me lembro perfeitamente, sua tia Becca tinha me convidado para ir a uma festa, como não tinha nada melhor para fazer, eu fui com ela, era um lugar até que legal, tinha boa música e bebida de graça, nada demais... Daí eu vi o seu pai vindo em minha direção... Foi como se a música desaparecesse e as pessoas também... Naquele terraço, só havia nós dois, eu e ele.
Não houve razão para falar. Papai, apaixonadamente, olhou no fundo dos olhos castanho-escuros de mamãe, ela retribuiu o sentimento, de mãos dadas, eles foram para a pista e dançaram e dançaram e dançaram.

─ Oi ─ disse o papai.

─ Oi ─ disse a mamãe.

Eles riram, constrangidos.

─ Então, eu sou o Felipe.

Mamãe disse o nome dela.

─ Ah, o que você acha de sair daqui? ─ perguntou o papai. ─ Está muito barulhento.

─ Eu acho que é uma ótima ideia ─ respondeu a mamãe.

Eles saíram do terraço, hipnotizados um pelo outro, desceram as escadas e ficaram conversando, sozinhos, no térreo do prédio, papai contou uma de suas piadas mais sem graças e mamãe, genuinamente, achou-a engraçada, naquele momento trocaram seu primeiro beijo e então souberam ─ do fundo do coração ─ que eles estavam destinados a ficar juntos para sempre.

E o resto são... Outras histórias.


HISTÓRIAS DO PAPAI ~ FIM


0 comentários:

Postar um comentário