quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Crônicas da Minha Vida (198) + O Salto



.: O SALTO :.


É uma tradição, não tem jeito.

Em julho, estamos fadados a arrumar nossa bagagem e pegar o primeiro voo para a cidade-natal do papai, nos hospedamos na casa de vovó e vovô, que esta cada dia mais caduco, daí nós passamos o dia e uma porção da tarde visitando a família do papai, então trocamos de roupa e rumamos à Estação das Docas para encontrar os meus tios postiços e os filhos deles, que são meus primos de criação.


Papai é completamente alucinado pelos meus tios postiços e eles são também são alucinados pelo papai, quando estão juntos, se divertem como se não houvesse amanhã, algo que me enche de felicidade – desejo do fundo do meu coração que minhas amizades perdurem tanto tempo assim.


Papai, tio Patty, tio Téo e tio Jorge se conhecem desde quando tinham dez anos de idade, estudaram na mesma escola, continuaram saindo durante os tempos de faculdade e sempre fizeram o possível para se reunirem todo fim de semana no seu barzinho preferido, o Escórpio.


De acordo com papai e com o tio Patty, o Escórpio era o barzinho “mais imundo, nojento, de má qualidade, com banheiros de dar medo, cheio de rombos no teto, com um barman dolorosamente chato, garçonetes metidas, copos trincados e com ratos do tamanho de poodles”.


– Então por que vocês iam lá? – certa vez eu perguntei.


– Porque éramos pobretões e o lugar era perto do nosso apartamento – foi o que papai me respondeu.


O Escórpio foi demolido cinco anos depois de o papai ter se casado com mamãe, hoje em dia há um pequeno playground para as crianças do bairro ocupando o seu lugar, papai e meus tios postiços admitam que tenha sido uma bela mudança, contudo sentem muita falta do barzinho imundo, felizmente, o prédio – e, consequentemente, o apartamento – onde viveram durante aquela época ainda esta de pé até os dias de hoje.


Embora tenha escutado muitas histórias sobre o tal apartamento, só fui visitá-lo ano passado quando papai descobriu não haver ninguém morando lá, ele nos levou até o bendito lugar não mobiliado, descreveu como fora quando estava morando ali e nos contou uma história ocorrida naquele lugar – história que agora eu contarei para vocês.


Isso aconteceu por volta de dois anos antes de o papai conhecer a minha mãe, ele e tio Patty ainda estavam dividindo o apartamento, tia Déia tinha tomado conta de 70% do guarda-roupa do tio Patty, tio Téo acabara de sair de um longo relacionamento com uma mulher chamada Josefina (um comentário: que nome horrível!) e tio Jorge não tinha nem conhecido tia Ciça nem tinha se convertido a monogamia.


Quanto ao papai... Ele não estava tendo muita sorte naquela época. Havia levado um pé na bunda que foi descrito pelo tio Patty como homérico, vovô tinha sido hospitalizado outra vez, estava insatisfeito com sua posição na clínica e nadava em um mar de dívidas.


O estresse era tanto que um dia papai não aguentou. Ou melhor, cito tio Patty: ele pirou. Simplesmente acordou numa terça-feira qualquer, tomou banho, colocou uma roupa para trabalhar, rumou de ônibus para a clínica, entrou na sala do chefe e berrou em plenos pulmões: “Eu me demito”.


– É... Não foi exatamente uma das minhas decisões mais espertas – ele me disse.


E definitivamente não foi. Papai saiu do prédio com um sorriso de orelha a orelha, então dobrou a esquina na avenida e soltou um palavrão tão alto que assustou os pássaros do Santuário Basílica de Nazaré.


– Eu não acredito que fiz isso! – lamentou-se, sentado no balcão do Escórpio. – Digo, como é que eu vou pagar as contas agora? O aluguel! A faculdade da minha irmã! O cartão! Como? Como? – soluçou em desespero.


Para sorte de papai, seus amigos eram os melhores naquela época e continuam sendo até hoje. Tio Patty disse que pagaria o aluguel sozinho, tio Téo lhe emprestou uma quantia considerável para ajudar a pagar algumas parcelas da faculdade da minha tia de sangue e o tio Jorge lhe arrastou para uma boate naquela noite – papai acordou no outro dia na cama de um quarto que nunca tinha visto na vida e na companhia de duas mulheres cujos nomes ele nem desconfiava.


– O que ele achou bastante desestressante – me falou tio Jorge aos risos.


De fato papai adorou aquela situação... Até o namorado de uma das duas mulheres (um homenzarrão de quase dois metros e com bíceps enormes) entrou em contato com ele, mas isso é outra história...


Enfim, o que eu estava dizendo? Ah! Da maré de azar que afligira o papai.


Continuando... Papai jurou que pagaria cada tostão emprestado para o tio Patty e o tio Téo somado a 10% de juros, então preparou o seu currículo no notebook da tia Déia e enviou cópias para todos os hospitais e prontos-socorros da região metropolitana. Infelizmente, ninguém o contatou de volta.


– Seu pai realmente estava numa fria – me contou tio Patty. – Foi sua pior época.


Os deuses somente resolveram sorrir para o papai três semanas mais tarde quando o encarregado do hospital da Av. Gov. Magalhães Barata lhe fez uma ligação e marcou uma entrevista para a próxima quinta-feira às 10 horas em ponto. Papai ficou tão feliz com a notícia que pagou uma rodada de bebida para os meus tios naquela noite. Aquela era a sua chance de sair do fundo do poço.


Passou o sábado, o domingo, a segunda, a terça, a quarta e então amanheceu a quinta-feira fatídica, o Dia D – “D” de decisivo.


Desde quando eu era muito pequenino, papai me diz que os deuses são criaturas que amam a ironia e, de fato, a situação daquela quinta-feira mostra isso. Depois de anos e anos consumindo café em quantidades estrondosas, papai desenvolveu uma intensa insônia, de modo que é acordado mesmo pelo cair de um alfinete – imagine sua situação naquela madrugada de quinta-feira, na qual a vizinha do apartamento de cima resolveu montar o karaokê e passou a noite inteira cantando a música A Girl Just Wanna Have Fun da Cindy Lauper (alguém tem ideia de quem ela é?).


Não fechou os olhos até às quatro e meia da madrugada. Quando finalmente pegou no sono, dormiu que nem uma pedra, algo normalmente aprazível, contudo péssimo naquela situação, pois acabou perdendo a hora que deveria acordar – culpa do despertador do celular, o qual falhou em funcionar.


Papai acabou sendo acordado pela barulheira da tia Déia arrumando o hall de entrada e sala de estar do apartamento (ela tem uma obsessão quase que patológica com limpeza), olhou para o relógio do celular, e descobriu faltarem quinze minutos para as dez horas, berrou um palavrão tão alto que, de acordo com tia Déia, fez a avó da vizinha do andar de cima gritar “Corram, corram! Salvem suas vidas! São os cabanos!”.


Nas palavras de tio Patty, papai encarnou o Robson Caetano (outra referência que eu não entendi): tomou banho, fez a barba, penteou o cabelo, vestiu o único terno, engoliu o desjejum, tropeçou na tia Déia, pediu desculpas e saiu correndo em direção ao elevador. Fez tudo isso em cinco minutos. É difícil afirmar se foi ou não foi exagero da parte dele ao me contar tal história, entretanto sou obrigado a admitir que a combinação de adrenalina e noradrenalina é altamente potente.


Uma vez em frente ao elevador, papai amaldiçoou o conformismo: o elevador do prédio estava quebrado há seis meses e como ninguém fez qualquer reclamação, não foi feita qualquer manutenção. Fazendo um esforço sobre-humano para não ficar mais nervoso ainda, papai começou a descer as escadas somente outra vez ser alvo das brincadeiras do destino. Desceu o sétimo, o sexto e o quinto andar e tomou um susto ao chegar ao seguinte.


Os inquilinos do apartamento 4C estavam se mudando justamente naquele dia! E havia um piano pesadíssimo dentre os seus pertences, os dois homens da mudança vinham carregando aquele troço desde o térreo e, compreensivelmente, agora eles faziam uma pausa para recobrar as forças, o problema era que tinham largado o piano na dobra da escadaria, portanto tornando a passagem impossível.


Papai pediu com toda educação possível para aquela situação, que era quase nula, para os homens moverem o piano, um dos grandalhões sorriu para ele e pediu para que, por favor, fosse se foder. Se estivesse na companhia de tio Patty, que tem certo treinamento em kickboxing, ou de tio Jorge, que até hoje é um homem grandalhão, papai teria entrado numa briga naquele momento, como não era o caso, saiu dali com o rabo entre as pernas.


Elevador quebrado e escada bloqueada. Tudo parecia perdido até o momento em que o estranho cérebro do papai acessou uma memória do mês passado quando ele e tio Patty deram uma festinha no terraço do prédio com direito a churrasco, uma piscina de plástico, refrigerante dietético (nem naquela época papai consumia álcool) e um combo triplo particularmente adorado pelo tio Téo: tequila, sal e limão, que são consumidos em tal ordem.


Depois de ter tomado praticamente sozinho uma garrafa inteira de tequila, tio Téo teve a ideia brilhante de saltar para o terraço do outro prédio cuja distância era de mais ou menos um metro, talvez ele tivesse conseguido caso sua coordenação motora não estivesse tão prejudicada.


– Normalmente teríamos deixado com que ele tentasse, mas depois de ter chamado a sua tia Déia de “meu pãozinho-de-mel”, nós sabíamos que ele não estava muito bem – papai me explicou.


De volta à história... Papai pensou: “É uma distância pequena e eu não estou bêbado”. Não deu outra. Ele saiu correndo rumo ao terraço como se estivesse indo tirar o vovô da forca, subiu no parapeito, evitou olhar para baixo, tomou fôlego e murmurou para si mesmo: “É agora”.


E saltou.


Papai saltou de um terraço para o outro com sucesso, sentiu um pouco de dor ao aterrissar e dobrou ligeiramente o joelho direito sentindo uma pontada de dor, fora isso, estava em perfeita condição e com as emoções a flor da pele, desembestou para a portaria do prédio vizinho ao seu, cumprimentou o porteiro, ligou para um taxista amigo seu, o recentemente falecido Elias Auberjonois, que concordou em lhe dar uma carona de graça estritamente daquela vez.


Dez minutos mais tarde, papai entrou no táxi do simpático Elias, descendente de suíços, que dirigiu como um louco para chegar o mais rápido possível ao hospital onde seria feita a entrevista do papai, ele agradeceu ao camarada, desceu do táxi e correu aos tropeços até o balcão de informações do hospital, perguntou onde se encontrava o encarregado que havia lhe feito a ligação e foi ao encontro do mesmo.


E o encarregado se recusou a recebê-lo.


Papai ficou completamente arrasado. Todo seu esforço fora em vão. Voltou para casa, trocou o terno pelo pijama e se sentou à mesa da cozinha com intuito de comer os restos do bolo de chocolate dietético feito pela vovó e para conversar com tia Déia, que tentou animá-lo de todo jeito possível, ela conseguiu um sorriso e nada mais.


– Hoje eu me sinto muito feliz por não ter conseguido aquele emprego – papai disse da primeira vez em que me contou essa história. – Depois de algum tempo, o cara que conseguiu aquele emprego acabou sendo transferido para um hospital em Fortaleza. Se aquele cara fosse eu, talvez nunca tivesse conhecido a sua mãe, você e sua irmã nunca teriam nascido e eu nunca teria te contado a emocionante história que é a d’O Salto.



.: CRÔNICAS DA MINHA VIDA (198) :.

1890.
F: Ei, estará livre nesse sábado?
P: Mano, a priori, não tenho nada marcado. Por quê?
F: Porque eu estava a fim de ir te visitar. Fazer uma comemoração tardia, sabe. Passei na FAP e na UNAMA em Direito, veja só. E, bem, não me parece que eu tive duas vitórias se ainda não tive a oportunidade de comemorá-las com você, entende? Quer dizer, de todas as pessoas do mundo, a única que nunca parou de torcer por mim foi você, mano.

1889.
P: Por favor, mano, quando eu morrer, não me deixe ser enterrado.
F: Mano, você será cremado, Highway to Hell tocará no seu funeral e 10% das suas cinzas ficarão em minha posse conforme combinado.

1888.
F: Ninguém começa no topo do mundo, nem Jesus.
P: Mas sabe o que é pior? Jesus sabia que quando morresse, ele ia pros céus. Sabe qual certeza que eu tenho?
F: Que quando morrer vai pro inferno e o [gigantesco mano satânico], aquele cara super simpático, nem vai te arranjar uma suíte por lá?
P: Sim, porque ele vai tá com a [censurado], ou outra diaba qualquer. Ou então, eu vou pro umbral pra um monte de espíritos de luz ficar rezando na minha cabeça. Ou então, melhor, vou pro fundo da terra.
F: Não se preocupe, mano. Para onde eu for, tenho certeza que consigo uma vaga para você.

1887.
F: Sabe, é isso que eu adoro na vida: é tudo tão incerto! A menina que era uma estranha virou namorada do nosso grande mano esbranquiçado e, agora que não está mais junto dele, nós passamos a vê-la como uma irmã.
T: Sim, sim. Isso é muito legal. Falando nisso, olha a preta!
Ju: (entra no MSN).
F: Vixe! Parece um gongolo!

1886.
T: Voltei, mano!
F: (pasmo) Você tinha ficado offline?
T: Tinha! Eu não falei que eu ia sair por dois segundos?
F: É porque você continuou aparecendo online.
T: E aí, cê falou “comigo”?
F: Falei! E todas as mensagens voltaram. Se você tivesse respondido, eu estaria morrendo de medo agora.

1885.
CW: Às vezes, [eu] me sinto em um filme quando falo com você, suas falas parecem ser de cinema, e as do meu primo de cinco anos são de desenho animado.
F: Eu me daria muito bem com o seu primo de cinco anos. Isso é bom? Digo, as minhas falas parecerem de filme?
CW: Arram. É legal. Você pode fazer roteiro, leva jeito.

1884.
F: (falando sobre a família de uma amiga) Aquele filme, Os Excêntricos Tenenbaums, poderia ter sido baseado neles.
CW: Não conheço.
F: Você NUNCA assistiu a esse filme?
CW: Não.
F: Certo, que filmes clássicos você já assistiu?
CW: Baby — O Porquinho Atrapalhado e Esqueceram de Mim.
F: Há locadoras aí?
CW: (olhar assassino) Não. Só tem ocas. Ontem usei cipó para chegar ao centro [da cidade].
F: Eu sabia que aquela foto não era apenas de sacanagem (risos)!

1883.
F: E aí, como está indo o planejamento do casamento [da sua prima]?
Rf(pp): Felipe. Casamento. Hm. Felipe e casamento. O que essas duas palavrinhas me lembram ao juntá-las? Alguma sugestão?
F: Eu, rompendo com você no casamento da [censurado] [há quatro anos]?
Rf(pp): É!
F: Ainda não me perdoou por isso, não é?
Rf(pp): Não, não perdoei.
F: Dará merda quando estivermos nós dois lá em cima do altar?
Rf(pp): Não me venha com as suas gracinhas e tudo ficará bem.
F: Dará merda quando estivermos nós dois lá em cima do altar.
Rf(pp): Oh, se dará! Eu já posso imaginar até o filme que farão baseado nisso!
F: Eu pensei que já tinham feito!

1882.
Lu: Você está mais rodado que ônibus velho.
F: Não dá para ser micro-ônibus? Eles foram lançados há pouco tempo, não são tão velhos assim.

1881.
F: Sério, por que as meninas só me ligam nesses horários [indevidos]?
Lu: Porque bebem demais e ligam.


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